quinta-feira, 17 de abril de 2014

DA ARTE DE TORTURAR CRIANÇAS * Antonio Cabral Filho - Rj

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Dia desses eu atravessei a cidade, fui lá pros confins da zona oeste, na casa de um amigo, fechar uns textos que tínhamos de encaixar numas publicações. 
É que esse negócio de e-mail prá lá e-mail pra cá não funciona. 
Saltei do ônibus e lá estava ele no ponto encostado na sua Harley Davidson, de estimação. Engarupei-me e partimos pelo baixadão de Raíz da Serra. O desconforto era imenso. Não suporto andar de moto, inda mais na garupa. Ao chegar em sua casa, notei que estávamos tensos, fosse pelas responsabilidades ou pelo trajeto desagradável.
 Sem querer aporrinhar, pedi-lhe um copo d'água, e ele trouxe uma garrafa com dois copos e sentamos à mesa da sala. Ele pegou seu notebook, eu abri o meu e liguei e fomos corrigindo textos, acertando frases e períodos; plantando massetes aqui,  ali expressões jornalísticas, alguma gíria linguística, e, às vezes ríamos, porque sabemos que isso vai dar lenha; neguinho vai ter que ir ao "burronário" pra decifrar um pouco, pouco apenas, porque tudo não dá...Estamos matando à unha.
Suas crianças, três, um menino e duas meninas, se encastelaram na mesa; cada uma com seu  " ai...bolso!"; é claro que atrapalha. Ele já está irritado com elas, pois manda sair, ir para os seus quartos, para a varanda, para o quintal, mas elas repicam que "eu sou muito legal" e querem saber se eu vou contar história pra elas hoje. É tio Cabral pra lá e tio Cabral pra cá...Não tem jeito! Mas ele resolve pôr o menino de castigo; tem 4 anos, é muito esperto, "brinca" com um computador! 
Ele foi para o quarto chorando, prometendo que vai esperar para o Tio Cablal lhe contar história, o que asseguro fazer. Enquanto isso, eu e J, como vou apresentar meu colega, uma vez que se trata de gente real e não ficção, comparamos textos nossos com textos de Carlos Heitor Cony e Luiz  Fernando Veríssimo, procurando tirar uma casquinha nos papas da crônica. Mas eis que de repente começamos a ouvir uma voz tipo Mônica....mããe, a senhola qué mãe de Jesus, me adiuda, a senhola pode, é mãe de Jesuus, fala com meu pai pla eu blincar com mias ilmãs lá na valanda, diiii pla ele que noão agluento ficá pleso no esculo...vai! Eu olo pla senhola todo dia....
 Ao ouvir isso, J não aguentou e foi rápido para o quarto do menino, pegou-o nos braços e pediu desculpa, enquanto ele agradecia a Nossa Senhora dizendo " a senhola é lápida hein! Eu vou olá mais! Obligado!!" e beijou o pai, que caiu no pranto.
J, assim como eu, somos de raíz católica, temos nossos lares cheios de símbolos de nossa formação religiosa; Cristo na cruz, esculturas de igrejas barrocas, Santo Antonio, São Jorge, São Francisco de Assis e, impreterivelmente, imagens de Nossa Senhora pela casa toda. É o caso do quarto do menino dele, que ostenta um quadro da Virgem vindo de sua Avó, Dona Olinda, descendente de italianos franciscaníssimos. É aos pés Dela que ele reúne-se com esposa e filhos para orar ao fim dos seus dias. E é por isso que o pequeno P sabe se dirigir à Santa.
Mas, conclusão: Ele, como torturador, não faturaria nem um café!
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TERRA DE POSSE * Antonio Cabral Filho - Rj

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Nasci em 14 de agosto de 1953, no povoado de Jampruca, então Distrito do Município de Frei Inocêncio, Estado de Minas Gerais. O local era uma carvoaria. Meus pais e demais familiares, parte formada por Nativos e parte brancos, portugueses e italianos, sobreviviam disso. Na época, anos 50, haviam na região conflitos agrários envolvendo os dois lados da família, dividida entre "grileiros" e população Nativa, na disputa pelas terras, muito férteis naquela região do leste mineiro, pelo menos àquele período. 


Não tenho lembranças precisas das ocorrências sobre os embates dos quais meu pai participava, mas lembro-me, muito bem, de sairmos no meio de uma noite, montados em burros, seguindo por uma estrada de rodagem, às vezes quase esmagados por carretas carregadas de toras de madeira, que passavam por nós tocando suas buzinas e nos intoxicando com a nuvem de poeira vermelha que levantavam. 


Viajamos até ao anoitecer, quando chegamos em um local, que muito tempo depois, eu fiquei sabendo chamava-se Colatina. Estávamos no Estado do Espírito Santo. Hospedamos na casa da Vovó Olinda, à beira de um rio imenso, muito perigoso, devido à forte correnteza de suas águas. Era o Rio Doce, na sua parte Capixaba, contou-me meu Avô, enquanto pescávamos, sentados em uma pinguela que cruzava o rio. 


Daí, da casa dos meu avós paternos, fomos morar no meio de um cafezal, numa localidade chamada Laranjinha. Aí, nasceu e morreu meu irmão José Maria, que não resistiu à inanição. Logo depois, meu pai conseguiu uma "Terra de Posse", para onde nos transferimos. Moramos em redes não sei quanto tempo, mas construimos uma bela casa de alvenaria, no meio da floresta, com tijolos feitos e queimados por nós, pois a terra vermelha é ótima para cerâmicas em geral. 


Não demorou e apareceu proposta de compra da "nossa propriedade", como se dizia na ocasião; e meu pai não pensou duas vezes, inclusive por temor à "grilagem". Pegou aquele dinheirinho e partimos de volta para o Frei Inocêncio-MG, aonde um tio meu era gerente de fazenda e nos alojou como agregados, até meu pai conseguir comprar uma nova terra. 


Mais do que rápido, meu pai adquiriu um sítio na alto da Serra do Paiol, local com vistas para toda a região, de onde eu e meu segundo irmão José Maria da Penha, nos setávamos no topo da Pedra do Urubu, ponto mais alto de toda aquela redondeza, e ficávamos contando carros; carros de passeio eram dele e carros de carga eram meus. Como na futura Rodovia Rio-Bahia não passavam carros de passeio, eu ganhava sempre ! 


É daí que vem a minha atração pelas cidades grandes, porque eu era louco para saber aonde iam tantos carros, tantas carretas, safras e mais safras de arroz, feijão, milho, abóbora, mamão, cana, porcos, galinhas, gaiolas cheias de bois... 
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