sábado, 26 de abril de 2014

JAVAÉ * ANTONIO CABRAL FILHO - RJ


***

Minha história começa pelo nome: Antonio.

Por ser filho de ambiente natural, onde os nomes são transparentes e

todos sabem seus significados, a palavra Antonio me causava

estranheza, por não saber o seu significado.

Passei a infância brincando com Coaraci, Jaci, Peri, cunhatans e

curumins da minha taba, nomes tirados por meu povo da sua relação com

a natureza onde vivia.

Mas a minha gente aceitava que um estranho chegasse e se juntasse a

nós, se casasse com uma cunhan da tribo e até que chegasse ao posto de

Ubirajara. Isso levou ao surgimento de nomes como o meu, Antonio; além

de outros como Maria, Ana, Francisco, Tereza etc, todos ligados a uma

religião baseada numa cruz e num homem branco que chamam de Jesus

Cristo, e, aos domingos, íamos à igreja deles.

Meu pai era um homem branco. Ele raptara minha mãe e a levara para um

cafezal, onde eu nasci. Depois, viemos morar com a família dela na

aldeia.

Até hoje eu não sei o que nos fez viajar no meio da noite, cruzando

rios a nado, florestas e montanhas no maior silêncio que eu já vi, sem

cortar arbustos nem cipós para abrir caminho ou fazer pousada sequer à

noite. Sei somente que minha mãe seguia na frente, comigo escanchado

ora nas costelas ora nas costas e, quando ela parava com o dedo

indicador sobre os lábios, era sinal de que havia perigo. Por diversas

vezes passamos ervas no corpo, para não atrais a sanha dos animais com

o cheiro do sangue humano.

Mas com o tempo eu fui percebendo algumas curiosidades sobre a palavra

Antonio: Nome de um santo que promove o casamento, uma espécie de deus

dos casais. Descobri depois que o seu dia é treze de junho, época de

festa junina, quando se faz quadrilha com todos fantasiados de

agricultor para comemorar as colheitas. Dessa época, eu preferia as

batatas assadas na fogueira, o milho cozido, os doces, as broas etc.

Pude notar que se tratava de santo festeiro, partidário da fartura e

certa liberdade de gula.

De surpresa em surpresa, caí sobre um dicionário de nomes próprios,

onde encontrei a surpreendente explicação sobre Antonio: Aquele que

não se vende, incorruptível, puro de espírito, que protege os pobres e

as crianças.

Depois de refletir sobre tudo que levantei a respeito do meu nome,

calei-me mais ainda sobre minhas desconfianças e rejeição a esses

nomes ligados a esse tal de Jesus e jamais revelei por que sempre me

apresentei pelo apelido de Javaé.

Certa vez meu pai deu-me a tarefa de capinar o matagal ao redor da

nossa oca, casa segundo ele, e ao terminar e amontoá-lo para queimar

depois de seco, foi-me entregue uma nota de dinheiro, para eu comprar

balas no domingo, após a missa dos cristãos. Então, lembrei-me do meu

nome, Antonio, incorruptível, que não se vende, lá do dicionário, e

perguntei ao meu pai se ele estava me comprando, me corrompendo, por

eu ter realizado uma coisa boa para todos nós, , como a segurança de

não haver nenhuma boiúna tocaiando nossos pintinhos, minha mãe deixou

claro que não gostou por ter lhe tirado o único local aonde pôr a

roupa para quarar e minhas amigas de brincadeiras chiaram por ficarmos

sem a relva onde estender as esteiras para tomarmos sol deitados.

Vendo meu embaraço, ante as três insatisfeitas, meu pai chamou-me e

disse ao pé do ouvido:

- Compra tudo de bala e dá duas para cada uma que elas esquecem logo-logo!

- Como o senhor é corrupto! Exclamei, mas não tive outra saída.

*&*

*

quinta-feira, 17 de abril de 2014

DA ARTE DE TORTURAR CRIANÇAS * Antonio Cabral Filho - Rj

**************************************************
Dia desses eu atravessei a cidade, fui lá pros confins da zona oeste, na casa de um amigo, fechar uns textos que tínhamos de encaixar numas publicações. 
É que esse negócio de e-mail prá lá e-mail pra cá não funciona. 
Saltei do ônibus e lá estava ele no ponto encostado na sua Harley Davidson, de estimação. Engarupei-me e partimos pelo baixadão de Raíz da Serra. O desconforto era imenso. Não suporto andar de moto, inda mais na garupa. Ao chegar em sua casa, notei que estávamos tensos, fosse pelas responsabilidades ou pelo trajeto desagradável.
 Sem querer aporrinhar, pedi-lhe um copo d'água, e ele trouxe uma garrafa com dois copos e sentamos à mesa da sala. Ele pegou seu notebook, eu abri o meu e liguei e fomos corrigindo textos, acertando frases e períodos; plantando massetes aqui,  ali expressões jornalísticas, alguma gíria linguística, e, às vezes ríamos, porque sabemos que isso vai dar lenha; neguinho vai ter que ir ao "burronário" pra decifrar um pouco, pouco apenas, porque tudo não dá...Estamos matando à unha.
Suas crianças, três, um menino e duas meninas, se encastelaram na mesa; cada uma com seu  " ai...bolso!"; é claro que atrapalha. Ele já está irritado com elas, pois manda sair, ir para os seus quartos, para a varanda, para o quintal, mas elas repicam que "eu sou muito legal" e querem saber se eu vou contar história pra elas hoje. É tio Cabral pra lá e tio Cabral pra cá...Não tem jeito! Mas ele resolve pôr o menino de castigo; tem 4 anos, é muito esperto, "brinca" com um computador! 
Ele foi para o quarto chorando, prometendo que vai esperar para o Tio Cablal lhe contar história, o que asseguro fazer. Enquanto isso, eu e J, como vou apresentar meu colega, uma vez que se trata de gente real e não ficção, comparamos textos nossos com textos de Carlos Heitor Cony e Luiz  Fernando Veríssimo, procurando tirar uma casquinha nos papas da crônica. Mas eis que de repente começamos a ouvir uma voz tipo Mônica....mããe, a senhola qué mãe de Jesus, me adiuda, a senhola pode, é mãe de Jesuus, fala com meu pai pla eu blincar com mias ilmãs lá na valanda, diiii pla ele que noão agluento ficá pleso no esculo...vai! Eu olo pla senhola todo dia....
 Ao ouvir isso, J não aguentou e foi rápido para o quarto do menino, pegou-o nos braços e pediu desculpa, enquanto ele agradecia a Nossa Senhora dizendo " a senhola é lápida hein! Eu vou olá mais! Obligado!!" e beijou o pai, que caiu no pranto.
J, assim como eu, somos de raíz católica, temos nossos lares cheios de símbolos de nossa formação religiosa; Cristo na cruz, esculturas de igrejas barrocas, Santo Antonio, São Jorge, São Francisco de Assis e, impreterivelmente, imagens de Nossa Senhora pela casa toda. É o caso do quarto do menino dele, que ostenta um quadro da Virgem vindo de sua Avó, Dona Olinda, descendente de italianos franciscaníssimos. É aos pés Dela que ele reúne-se com esposa e filhos para orar ao fim dos seus dias. E é por isso que o pequeno P sabe se dirigir à Santa.
Mas, conclusão: Ele, como torturador, não faturaria nem um café!
***

TERRA DE POSSE * Antonio Cabral Filho - Rj

***
Nasci em 14 de agosto de 1953, no povoado de Jampruca, então Distrito do Município de Frei Inocêncio, Estado de Minas Gerais. O local era uma carvoaria. Meus pais e demais familiares, parte formada por Nativos e parte brancos, portugueses e italianos, sobreviviam disso. Na época, anos 50, haviam na região conflitos agrários envolvendo os dois lados da família, dividida entre "grileiros" e população Nativa, na disputa pelas terras, muito férteis naquela região do leste mineiro, pelo menos àquele período. 


Não tenho lembranças precisas das ocorrências sobre os embates dos quais meu pai participava, mas lembro-me, muito bem, de sairmos no meio de uma noite, montados em burros, seguindo por uma estrada de rodagem, às vezes quase esmagados por carretas carregadas de toras de madeira, que passavam por nós tocando suas buzinas e nos intoxicando com a nuvem de poeira vermelha que levantavam. 


Viajamos até ao anoitecer, quando chegamos em um local, que muito tempo depois, eu fiquei sabendo chamava-se Colatina. Estávamos no Estado do Espírito Santo. Hospedamos na casa da Vovó Olinda, à beira de um rio imenso, muito perigoso, devido à forte correnteza de suas águas. Era o Rio Doce, na sua parte Capixaba, contou-me meu Avô, enquanto pescávamos, sentados em uma pinguela que cruzava o rio. 


Daí, da casa dos meu avós paternos, fomos morar no meio de um cafezal, numa localidade chamada Laranjinha. Aí, nasceu e morreu meu irmão José Maria, que não resistiu à inanição. Logo depois, meu pai conseguiu uma "Terra de Posse", para onde nos transferimos. Moramos em redes não sei quanto tempo, mas construimos uma bela casa de alvenaria, no meio da floresta, com tijolos feitos e queimados por nós, pois a terra vermelha é ótima para cerâmicas em geral. 


Não demorou e apareceu proposta de compra da "nossa propriedade", como se dizia na ocasião; e meu pai não pensou duas vezes, inclusive por temor à "grilagem". Pegou aquele dinheirinho e partimos de volta para o Frei Inocêncio-MG, aonde um tio meu era gerente de fazenda e nos alojou como agregados, até meu pai conseguir comprar uma nova terra. 


Mais do que rápido, meu pai adquiriu um sítio na alto da Serra do Paiol, local com vistas para toda a região, de onde eu e meu segundo irmão José Maria da Penha, nos setávamos no topo da Pedra do Urubu, ponto mais alto de toda aquela redondeza, e ficávamos contando carros; carros de passeio eram dele e carros de carga eram meus. Como na futura Rodovia Rio-Bahia não passavam carros de passeio, eu ganhava sempre ! 


É daí que vem a minha atração pelas cidades grandes, porque eu era louco para saber aonde iam tantos carros, tantas carretas, safras e mais safras de arroz, feijão, milho, abóbora, mamão, cana, porcos, galinhas, gaiolas cheias de bois... 
***

sexta-feira, 4 de abril de 2014

FALSO DIÁLOGO COM FEREIRA GULLAR # Antonio Cabral Filho - Rj

*************************
************************
FALSO DIÁLOGO COM FERREIRA GULLAR

Gullar - " Eu, como poeta,
preciso da língua
para violentá-la."
Cabral - Eu como poeta,
prefiro violentar
com a língua.
*