http://consistencia.org/como-fugir-da-cadeia
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MURMURROS
Já escutava aquele barulho há dias. Era um barulho contínuo, como o som de um trovão prolongado. Colei então o ouvido à parede em busca de melhor acuidade sonora e, só pude convencer-me de que não mudava a intensidade.
Seguramente, não eram socos nem gemidos. Não era ruído de britadeira, nem de trator. Nem motor de carro parado. Nem barulho de compressor. Passaram-se dias, sem que aquele barulho parasse ou mudasse aquela intensidade monocórdica.
Inúteis minhas perguntas ao carcereiro sobre o que havia no compartimento ao lado da minha cela. A cada interrogação feita, o carcereiro de plantão reagia de forma cada vez mais assustada, a ponto de chamar o "pisiquiatra" do presídio, que após longa sessão de análise, comigo deitado sobre o catre que eu usava como cama, saiu profundamente deprimido com a minha situação e sem condições de emitir o seu diagnóstico.
A partir daquele momento, eu tive a leve impressão de que estava exposto à visitação pública, tal a quantidade de pessoas que vinham observar-me atrás das grades, cada uma esboçando reações as mais estapafúrdias. Algumas se punham a escrever, outras a ouvirem uns barulhinhos vindos de umas caixinhas de música encostadas ao ouvido; outras ainda se soltavam a cantar, dançar, a tal ponto que a segurança do presídio resolveu se reunir para encontrar uma solução.
- Resolveram acabar com a brincadeira. Foi o que consegui captar da conversa entre dois guardas, sempre prostrados a dois metros da minha cela.
A partir daí, convenci-me de ter me tornado incomunicável,ou seja, eu passara a ser um preso de alta periculosidade, sobretudo pelos olhares a mim emitidos, fosse pelos carcereiros, guardas ou até comandantes militares, que se plantavam frente ao portão, sempre escrevendo e passando comunicados pelo rádio instalado em um jipe militar, de onde não arredavam pé.
Mas houve um dia em que não apareceu ninguém. E o carcereiro chegou assoviando, o guarda de plantão leu um jornal inteiro, e, insolitamente, deixou-o cair bem perto do portão, indo embora a seguir.
Seco por uma notícia do mundo lá fora, como eu estava, corri o risco de ganhar uma sessão de pau-de-arara ou levar um caldo, mas arrastei-o como um gato que toma o brinquedo do outro e pus-me a examinar em que direção o guarda tinha ido. Não o vi mais. Aliás, nunca mais. Voltei-me então para o jornal. O vento soprava tranquilamente, brincando com as folhas secas do pátio, vindas não sei de onde, uma vez que ali, no campo visual à minha frente, não haviam árvores.
Os olhos corriam o jornal avidamente, até que esbarraram num COMUNICADO do Ministério da Defesa, avisando que o PRISIONEIRO X se encontrava
incomunicável por tempo indeterminado, e, mais abaixo, uma nota registrando o DESAPARECIMENTO de Olinto dos Santos, 31 anos, brasileiro, casado, residente à Rua Almirante Bournier, 171, centro; "Quem o vir ou tiver notícias, favor comunicar-se com Maria dos Anjos, no referido endereço. A família agradece." Joguei o jornal de lado. Afinal, qual a graça de fatos tão idiotas? Comunicados militares, gente desaparecida, eu hein!
O sol já se ia batendo em retirada, e a penumbra começava o seu reinado ao longo do pátio e logo ocuparia os cantos de minha cela a fazer-me companhia até ao dia seguinte. Então, só me restaria esperar a noite chegar para eu trocar ideias com ela, o vento e as sombras, ora delgadas ora desengonçadas, como um general de reserva.
Alguns dias sem guardas, sem carcereiros mal humorados, avaliei que havia mudado a minha situação. Parecia que estavam sendo "bonzinhos" comigo. Primeiro, foi o jornal, o carcereiro descontraído, depois a suspensão do guarda no portão da cela, e agora, sobremesa no almoço, no jantar, lanche às 21 horas; eu hein!...
Mas durou pouco. Nem uma semana, e chegaram três oficiais e um guarda à porta da cela, e um deles afirmou, meio sizudo e sem ninguém lhe perguntar: É esse aí! Disse apontando para mim, visivelmente nervoso. Um outro, de olhar perscrutativo, disse"Abre!", sem tirar os olhos de mim. Os oficiais entraram na cela e o guarda ficou na porta, de metralhadora em punho, descontrolado a tal ponto que até a arma tremia. Um dos oficiais perguntou-me, em tom irônico: "X, você conhece a ante-sala do inferno?" Sem entender nada, olhei-os todos, de cima a baixo, um a um, detidamente, e lembrei-me do jornal: O "desaparecido" era eu.
- Cuidado, ele é perigoso! Gritou o guarda empunhando a metralhadora, ao que todos anuiram e foram se retirando de costas, devagarzinho. Mas o mais forte deles, meio barrigudo, branco e de bigode, disse pra mim, com a voz cheia de sulismos:
- Você está nela!! E se foram. Eu continuei ali, preso. Sem entender nada.
Mas um silêncio de pedra tomou conta de tudo, por dias a fio. Não apareceu mais guardas, nem carcereiros, nem militares nervosos, nada. Só que deixaram o portão aberto, sem cadeado e até a corrente levaram. Porém, temendo fuzilamento por "fuga simulada", fiquei mais atento ainda. Dormia o mínimo, pelo risco de não acordar. Foi assim, até aventurar-me a abrir o portão e olhar para o lado de fora e constatar, surpreso, que eu estava largado pra trás, que o quartel fora abandonado e todos se foram...
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