terça-feira, 4 de novembro de 2014

COISAS DO ARCO DA VELHA - Conto * ANTONIO CABRAL FILHO - RJ

-theathing-
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COISAS DO ARCO DA VELHA

- Os etês gostam de bunda. Foi o que captei da conversa entre as meninas, enquanto caminhava no calçadão do Liceu.
- Tem caras que não gostam, né; acho que não são chegados; comer um cuzinho será que não faz bem?!
- Cruz credo! Exclamei mentalmente, e segui meu caminho rumo ao Fórum, que fica em frente.
Elas vieram na minha direção, a passos firmes, olhar direto, "você tem fogo...", perguntou a morena pele-de-cuia, "e como tem", observou a loira de olhos azuis, típica europeia, me examinando de cima a baixo, parando os olhos, ostensivamente, na minha barriguilha; "te vejo sempre por aqui", disse a morena, enquanto eu lhe entregava o isqueiro; "é, estou sempre na cantina, tomando café; café de Fórum é choco, frio, fraco, e causa-me asia; então, venho na cantina, às vezes comer alguma coisa", concluí.
- Uma bucetinha, um cuzinho e o que mais? Indagou a loura, acendendo o cigarro.
- Você está sempre cercado de meninas! Não é à toa!! Vai ver é o maior safadão, pica doce.... Completou a morena, sempre combinando seus ataques com a colega.

O Liceu é uma escola destinada à classe média alta, concebida nos tempos do império, onde só entravam filhinhos de papai e seus apadrinhados do aparelho de estado. Mas isso dançou com o advento da república, e hoje, assim como os "Pedro II", recebem qualquer um, desde que aguentem suas provas de avaliação, pois ainda são um padrão de ensino almejado pelas camadas interessadas em ascensão social e tecnica. Seus prédios são construções coloniais, com arquitetura rebuscada, estilosos; janelões de madeira nobre, ainda insensíveis ao cupim. Uma coisa fantástica em termos de concepção, pois possuem salas espaçosas, bem arejadas, lousas imensas, mesas de cedro vernisadas, cheias de gavetas; seus corredores lembram aqueles do filme Harry Potter, sinistros de arrepiar. E no caso do Liceu Nilo Peçanha, de Niterói, Rio de Janeiro, tem um sótão, que seguramente foi planejado como adega, pois tem balcãozinho cheio de compartimentos para copos, taças e talheres, à frente de um espelho na parede em moldura de mogno  e uma silhueta vitoriana; além de um velho barril de carvalho, aonde, sem dúvida, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Lima Barreto e tantas outras celebridades literárias desta terra de orfandades iniciaram-se nos caminhos da radicalidade estética.

- Conhece o sótão do Liceu? Indagou a morena, quase ao pé do meu ouvido.
- É ideal para uma brincadinha... Insinuou ela. Respondi que lá eu já namorei, me embriaguei, estudei e fiz muita reunião do grêmio.
- Então é "liceano... Vamos!" Disseram ambas, quase em uníssono. 
No rádio da cantina, exatamente às dez da manhã no meu Rolex, tocava uma canção, cujo trecho diz assim:" Deixa isso pra lá, vem pra cá, venha ver. Eu não tô fazendo nada, nem você também..." e seguia insinuando outras coisas, ditas pela voz de um dos meus tantos ídolos da mpb, Jair Rodrigues.

Bom, pra encurtar o lererê, a morena está aqui em casa há 32 anos. Já somos avós, e, nem os filhos nem os netos jamais saberão das nossas façanhas e quando lhe mostrei o rascunho deste texto, ela fitou-me com seu olhar fogueando e objetou: você não pôr aí os detalhes...
- Claro que não!! São nossas relíquias!
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segunda-feira, 27 de outubro de 2014

SÁBADO CAIPIRA - Conto # Antonio Cabral Filho - RJ

PORTINARI
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O caipira estava preocupado com o sol castigando a sua plantação e foi conversar com o compadre  sobre o seu drama:
- Ô sô! Né q'esse solzão tá matano meu mio e meu feijão! Tinha de dá um pé d'água pra mode sarvá minhas prantas!
- Pois  é sô! Já vai umas boa semana sem uma chuvinha, né? Respondeu o compadre em tom de interrogação, pra esticar o fio da meada, e continuou inquirindo o seu amigo:
- Ocê sabe em que dia da semana cê prantou seu mio e seu feijão? Mas o dono  da plantação limitou-se a menear a cabeça negativamente. Então o outro prosseguiu seu interrogatório: 
- Se ocê prantou de domingo a sexta-feira e ainda mais com esse solzão, pode descansar que não vai dar nada! 
Mas  o plantador encafifou-se todo e quis saber o que o sol e o dia da semana tinham a ver com o seu milho e o seu feijão, e, olhando sério para o amigo, perguntou:
- Mas o quê qui ocê tá querendo mi dizê?!
- Ocê num sabe que existe a lua? Pois é. Explicou o compadre do caipira, que ainda não entendia patavinas do que o outro estava explicando-lhe. E continuou a querela:
- O quê qui a lua tem a ver com meu mio e meu feijão? Interrogou ele meio atordoado, ao que o outro retrucou-lhe:
- Ocê num sabe o dia qui o Sinhô descansou não?!
- Sei! Mas o quê qui isso tem a ver com lua, dia da semana, sol e prantação? Reagiu o pobre caipira, demonstrando irritação.

O seu compadre, mais astuto, foi explicando-lhe, pacientemente, e disse-lhe:
- É que no sábado o Sinhô descansa, num sabe; então no sábado a lua num gunverna, num sabe; então o sábado é o mió dia pra si prantá, num sabe; pra si cortá o cabela, num sabe; si capá poico, frango de engorda, podá arve, num sabe....

E nesse momento veio chegando um terceiro caipira, de nome Mané, a quem p caipira plantador recorreu:
- Ô Mané, em qui dia da semana ocê pranta sua roça e em que lua? O caipira Mané não se fez de rogado e foi lascando resposta:
- Eu pranto todo dia ! Na lua eu não posso prantá nada não, porque não posso ir inté lá, então eu pranto é na terra mermo! 
O compadre do plantador embargou a conversa com um meneio de cabeça, em sinal de desaprovação, e,
propôs a todos tomar mais uma branquinha pra lubrificar a palavra, e deixar esse assunto para resolverem durante a caminhada  de volta pra casa. 

Gargantas enxaguadas, pé na estrada, e lá se foram os três gesticulando encima de seus cavalos e sob a nuvem de poeira vermelha dos estradões mineiros.
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domingo, 28 de setembro de 2014

domingo, 14 de setembro de 2014

PEDRO GIUSTI ENTREVISTA ANTONIO CCABRAL FILHO - ANTONIO CABRAL FILHO - RJ

MOMENTO LITERO CULTUAL - SELMO VASCONCELLOS  - RO
ANTONIO CABRAL FILHO

"O poeta é um romântico revolucionário em tempo integral."
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Entrevistador: PEDRO GIUSTI, POETA E TROVADOR MARANHENSE
TROVADOR PEDRO GIUSTI E OUTROS VERSOS
http://pedrogiushttp://pedrogiusti.blogspot.com.br/ti.blogspot.com.br/

Entrevista:

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P: Quem é Antonio Cabral Filho?
R: Gosto deste modo de perguntar; porque é frontal e permite uma resposta extensa ou sucinta; mas prefiro esta: Sou Antonio Cabral Filho, que em vossa presença emigra; do pinto que não quer milho, João Cabral que lhe diga.



P: Como começou a escrever? Teve influências familiares?
R: Durante a catequese no meio rural em que vivi até aos quinze anos, é comum o uso das formas literárias e musicais populares; e foi aí, dentro da igreja que fiz contato com a poesia, fazendo quadras para cantar durante as aulas de catecismo, em sua maioria, dedicadas a Nossa Senhora. E, como não podia deixar de ser, minha maior instrutora foi minha mãe, que ainda canta "Ìndia, seus cabelos nos ombros caídos, negros como anoite que não tem mais fim..." como ninguém.



P: Por que poesia?
R: A poesia é meu forte, em função da objetividade com que ela serve para dar a resposta certa na hora certa ao interlocutor certo...



P: Como o poeta se coloca no mundo?
R: No meio da arena, com uma espada em cada mão...



P: Como é seu processo de criação? Existe inspiração?
R: Relâmpago, como agora; a resposta é medida pela pergunta. Inspiraçâo?  "Por Deus e por todas as coisas em que não creio, minha sombra fala, mas não no creio." (O Viandante e Sua Sombra - Nietzsche)


P: Atualmente, para quem os poetas escrevem?
R: Não somente os poetas, mas todo escritor escreve para si mesmo.


P: A arte é própria dos artistas ou todo mundo é artista?
R: Ferreira Gullar fala sobre isso o tempo todo e eu concordo: Todo mundo é artista. O que diferencia os "artistas" do seu conjunto (humanidade) é a sensibilidade com referencia a sua criação: Jamais existirão dois "Fernando Pessoa".


P: Despertar para a literatura é despertar para si mesmo?
R: Na medida em que seja despertar para o Mundo, sim.



P: A arte contribui para melhor compreensão do mundo?
R: Arte é integração da pessoa com o Mundo, e, na medida em que despertamos para nós mesmos, rompemos o processo alienante e nos tornamos sujeitos, frente a nós , portanto frente ao mundo.



P: Crê que a poesia, mesmo a não engajada, é um agente de
transformação pessoal? E social?
R: Até Marx já falou sobre isso: Um bom poema de amor é engajado na medida humana do Amor, uma vez que ELE resgata a pessoa na dimensão individual e a transporta para o coletivo ante a pessoa amada.


P: Acha importante o intercâmbio entre os escritores e seus leitores?
R: É a maior "oficina" do escritor; pois se recebe contribuições fantásticas, às vezes sem a menor pretensão.


P: Como vê os prêmios, concursos, eventos e afins? Contribuem
realmente para melhor literatura e formação de público?
R: Como palcos da produção, onde se realizam as suas concretudes, uma vez que "vender" uma ideia ou um produto depende desses dois componentes: A VIA de acesso e o DESTINATÁRIO.


P: A internet disseminou a literatura? Como vê os sites, blogs? Como
alteram a relação entre escritor/público?
R: A INTERNET assustou muita gente; a mim inclusive, que desmontei uma livraria e distribuidora em 1992, por trabalhar, basicamente, com livro didático, o mais "xerocado" e "baixado" do mundo; no entanto, para a literatura, ela representa um espaço ilimitado, pois permite acesso a mais pessoas e combate o preço final do livro impresso. Os blogs são "nossos fanzines" de outrora, tão guerreiros, buscando sempre mais adeptos/fãs/colecionadores...



P: Considera os saraus importantes para a socialização da poesia?
R: São fantásticos espaços de encontro entre escritores, leitores, boêmios, personagens etc


P: Como vê a literatura atual? Quais seus novos autores preferidos?
R: A literatura atual, brasileira, é sucesso de ponta a ponta do territótio nacional, dadas as suas necessárias proporções; hoje ficou mais difícil ser "best-seller" na metrópole, mas de certa forma, todos o são nas suas províncias...
Sobre os "Novos Autores", fica difícil destacar alguém, justamente devido ao grande número de gente publicando.

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P: Deixe um pequeno currículo.
Antonio Cabral Filho publicou até agora ECCE HOMO, poesia, 1997; DUELO DE SOMBRAS, poesia, 1999; VER...SO CURTO&GROSSO, poemas piadas,2006; CD/DVD DEPOESIA, 2008, CINZA DOS OSSOS, poesia, 2009...

Coletâneas: POETAS DA CIDADE DE NITERÓI, poesia, 1992; ANTOLOGIA POÉTICA 2 -UFF/Eduff, poesia 1996; POETAS 10engaVETADOS, poesia, 1995; BRASIL LITERÁRIO 2007/2010; ANTOLOGIA 13 POSTAL CLUBE, poesia, 2011; FANTASIAS, coletânea de contos, crônicas e poesia, 2011, ALPAS21; POETAS EN/CENA 6 BELÔ POÉTICO 2012. Em programação: ANTOLOGIA DE POETAS BRASILEIROS CONTEMPORÂNEOS, pela Ed. Pimenta Malagueta/Elenilson Nascimento...

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Contato:



E-mail: letrastaquarenses@yahoo.com.br
Blog: letrastaquarenses.blogspot.com.br 

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Pequena mostra da poesia de Antonio Cabral Filho

HAICAIS

Das copas floridas,
despencam só broches de ouro:
Ipês amarelos.
*
No cinzeiro cheio,
a prova do que serão...
Só quero aplaudir...
*
Canto da Uiara,
lá bem no ermo da floresta:
Quem ouve, não volta.
*
Na dança do fogo,
chamas devoram desejos:
Sagração do rogo.
*
Pleno meio dia,
nenhuma nuvem no céu:
Verão implacável.

TROVAS

Trem é coisa de mineiro,
mas é meio de partida;
leva o pai ao estrangeiro,
deixando a mãe desvalida.
*
Quem criou obras tão belas
como o luar das Gerais,
fez da mulher uma delas,
mas pra si tem algo mais...
*
Minas é demais da conta,
é terra das emoções;
pois só ela tem "Três Pontas"
e até "Três Corações"

*
Todos cantam sua terra,
também vou cantar a minha;
mas no meu verso se encerra:
- Minas Gerais é rainha!
*
POEMAS PIADAS

DESEMBUCHE

Oh meu caro Gabo,
tenha a santa paciência;
ninguém aguenta mais
"Cem Anos de Solidão!"
*
MACUNAIMAICAI

Sacrifício algum
vale prazer mais intenso
que matar o tempo.
*
MILITÂNCIA

Os meus sonhos de 68
acabaram em 69
nas areias de Ipanema
com uma loura bem suada.
*
SARRO

Poema feito nas coxas
é igual a mulher bonita:
Não precisa entender o enredo,
basta gostar do arranjo.
*
ELEGIA DE AUGUSTO DOS ANJOS

Fui ler Augusto dos Anjos,
mas assim logo de cara
fiquei que nem os arcanjos
caçando "Escarlete Ohara".

Pareceu-me um Frankenstein,
Drácula sem Baviera;
Por mais que vocês estranhem,
achei bem pior do que era.

Mas depois eu me dei conta,
tanta riqueza linguística
cuspida por gente tonta

sem apreço com estilística,
fora os burros sem cabrestos
aos coices pelos seus textos.
*
ESPELHO DE SOMBRAS

Por sobre os ombros
os olhos fitam o mundo
refletido no espelho
através da janela...
O corpo imerso no dia convulso
insensível aos suicídios
e ao calor das discussões
não figura, não é mais nem menos
na paisagem alheia.
O pintor no atelier
não o notaria pousado na folha
branca sobre a mesa.
O dia cheio de mecanismos
é tudo que cabe no espelho;
O resto, os olhos não podem ver...
***

LETRAS TAQUARENSES Nº 58 AGOSTO 2014 * ANTONIO CABRAL FILHO - RJ


LETRAS TAQUARENSES FANZINE LITERÁRIO - E_BOOK
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LETRAS TAQUARENSES BLOG
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CAMINHO DAS LETRAS BLOG - TODAS EDIÇÕES
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sexta-feira, 22 de agosto de 2014

GUISADO DE VIRALATA - Conto * Antonio Cabral Filho - RJ

ANTONIO CABRAL FILHO
em 2011, com os livros
ANTOLOGIA POÉTICA VOL2/UFF, FANTASIAS/ALPAS21, ANTOLOGIA 13 / POSTAL CLUBE
*

Seria só um domingo a mais na vida do menino católico levado à igreja pelas mãos da mãe para assistir à missa, confessar, comungar, tomar bênção ao padre, encontrar aqueles amigos " amigos só lá na igreja", primos arrastados pela orelha por desobedecer às mães; enfim, isso.                      

Mas, a única saída era ir à missa de sábado à noite e satisfazer "mamãe", se quisesse curtir uma cachoeira no domingo em companhia do broto desejado; foi o que fiz.

De manhã bem cedo, peguei meu cavalo, arreei, tomei banho, me arrumei, comi um pedaço de queijo e dei um  beijo na "véia", que assistia à missa de  Aparecida pela rádio Inconfidência e parti. Só ouvi o "Deus te guie!" de mãe em pé na varanda, enquanto esporeava o cavalo.

Desci a margem direita do Suassuí uns dez quilômetros e cheguei à fazenda do Mané Cachorro, como era conhecido o senhor Manoel Menezes dos Santos, criador de gado e cavalo de cria.

Mas o animal mais interessante que ele tinha não era das espécies eqüina nem bovina; era homo sapiens mesmo e do gênero feminino, que do alto dos seus apenas quatorze anos, já causava torcicolos nos verdadeiros garanhões  destas plagas de amores arrebatados a bala, quando ela passava chicoteando seu cavalo branco voando com a charrete.

Era loura mediana, e não tirava da cabeça uma fita vermelha em forma de bandana prendendo os cabelo à moda indígena, que lhe caía muito bem sobre aqueles olhos azulados, elevando a luz que realçava seus lábios rubros carnudos; típica italianinha.

Ao chegar, fui logo procurar a cadela Pintadinha, que eu lhe dera de presente uma semana atrás. Mas fui conduzido ao curral, onde ele tratava de uns potros com carrapato, e o meu "animal preferido" logo apareceu com uma bacia de mandioca cozida untada com manteiga, o que gerou um ataque de famélicos, levando-me a queimar a mão por avançar para uma guloseima, mas de olho na outra. Porém, até que foi bom. Fê-la se descontrair, rir um pouco às minhas custas e mostrar-me aquele brilho fogoso que só as mulheres apaixonadas têm quando se deparam com o homem desejado.

Comemos gulosamente, tomamos café, depois fomos pôr os animais na manga, até que chegou aquele momento "vago" que serviu-me de "deixa" e propus irmos todos brincar um pouco na cachoeira, onde o Suassuí quebra à direita. Tirei da cela do meu cavalo o calção de banho, que era de nylon, última moda vinda do Rio de janeiro, me troquei e todos se trocaram e fomos pegar as canoas; rumamos para o rio e formamos duplas; ela topou canoar comigo. Fiquei na dianteira, e fui desviando a canoa das pedras. Mesmo sem poder contemplá-la dado o cuidado que exigia total atenção, pudemos conversar. O trabalho dela na traseira da canoa não era nada fácil, pois devia evitar que batêssemos nas pedras e virássemos.  Chegamos logo ao grande lago e nos pusemos a nadar, trocamos um selinho mergulhando e nos afastamos para não "abusar". Depois chegaram seus dois irmãos seguidos pelos pais e curtimos com a cara deles. Sua mãe não perdeu tempo e, olhando-me de soslaio, disse entredentes: " Aí tem coisa; cêis tão nadando demais..."

Logo depois, tem uma queda d'água de uns dez metros de altura, mais ou menos, de onde gostávamos de pular para mergulhar no piscinão. Propus e dei o exemplo. Caí bem no meio do caldeirão, onde a água retorna depois da pancada no fundo, nadei rápido para a margem, pois ela já estava bem na ponta da pedreira, de onde é bem melhor o pulo. Seus pais vieram juntos, tirando a maior onda , a seguir os meninos voaram em saltos mortais de matar o Cezar Cielo de inveja. Foi a maior festa. Ficamos pilherando deitados na areia enquanto descansávamos.

 Mas o local tem o "Véu de Noiva" mais lindo que eu conheço, pois a água passa por trecho de cachoeira com forte correnteza, ficando totalmente espumosa e, ao chegar na descaída, transforma-se numa cortina de espuma. Por trás dela, tem uma gruta imensa, que eu nunca ousei explorar e que é onde os casais se escondem para namorar. Quando eu disse que ia ver a caverna, fui o último a chegar. 

Ficamos sentados em pequenas pedras conversando bobagens, até Seu Mané avistar uma sucuri do outro lado da piscina e propor levarmos aquele "animar" para comermos assado na brasa. Foi o suficiente para eu pedir-lhe a faca, pô-la nos dentes e avisar que eu ia para a cabeça, todos nos jogamos n'água e ao pegá-la, cortei uns cincoenta centímetro da cabeça para trás, enquanto todos continham-na com o peso dos corpos; fui à cauda e tirei mais de meio metro, e pronto. Era uma vez uma sucuri, uma vez sem o rabo para comandar o estrangulamento, sem a cabeça e o coração para "raciocinar", " quem vale o quê?"

Abrimos o ventre dela, limpamos todinha, subimos com ela nas costas ribanceira acima, pusemos dentro de uma canoa enquanto eu fui buscar o cavalo para puxar tudo  contra correnteza, desta feita ostentando um troféu a mais: bravura! 

Todos olhavam-me com um misto de alegria e admiração, até que o Dinho, irmão mais velho da 
Dasdô, disse " eu quero esse caboclo na família; assim eu não fico sem comer caça!" Mas o "brincadeira tem hora" do pai selou o assunto.

Dona Emília perguntou-me se eu queria um pedaço para minha família, mas recusei. Afinal, eu tinha que "somar pontos". 

Enquanto os velhos picavam o terror da Amazônia em postas, eu e os meninos tomávamos banho e contávamos vantagens, coisas do "Arco da Velha!"  Ninguém ficava para trás. Depois fui dar água a meu
cavalo e fiquei por lá um bom tempo, refletindo nos "acontecidos" até que chamaram para o almoço.

O domingo na casa do Mané Cachorro tinha tudo para ser inesquecível, pois foi a minha primeira oportunidade de ver a escultura grega daquela Vênus italiana. A canoagem, as habilidades com a navegação em correnteza violenta, o pulo do Véu de Noiva, a destreza em descepar a cobra com precisão, o cuidado em não parecer "avançadinho" com a menina, tudo somava a meu favor. Concluí lá com meu botões que eu estava no caminho certo. Mas agora vinha a pior parte, a hora do almoço. Como impressionar a princesinha fazendeira sem conhecer nada de etiquete? Apenas cheguei de mãos devidamente lavadas, observei que as cabeceiras do mesão de cedro eram destinadas aos pais da família, vi que a Dasdô ladeava o irmão Tim e do outro lado havia uma cadeira vazia ao lado do Dinho, seguramente, destinada a mim. Sem pestanejar, 
ocupei o meu lugar. 

Redundante observar que a sala era uma câmara de fragrâncias e que o estômago revirava de apetite, sobretudo, após tanto exercício durante a manhã toda.

Havia um tabuleiro cheio de carne frita, que pareceu-me ser de porco, pelo formato dos pedaços; uma travessa imensa de polenta, característica bem italiana; um panelão de ferro cheio de feijão, uma travessa imensa de arroz, um tigelão de salada de legumes, entre os quais detectei jiló e maxixe, pelos quais eu passaria "batido" etc.Fui objetivo e peguei uma concha de feijão, três colheres de arroz,duas rodelas de batata doce cozidas, um pedaço de carne e dei uma olhada para o jarro de refresco, pelo visto, de laranja, provavelmente feito por Ela. Provei, tinha pouco açúcar, aliás como eu gosto, e, ao provar, senti que "ela" olhava-me "por baixo" e notei a "deixa": Tinha sido feito por ela.

Enquanto comíamos, ninguém conversava. Só se ouvia a orquestra dos talheres.

Não sou de ficar comendo a tarde toda. Gosto de fazer minhas refeições rapidamente. Fui o terceiro a terminar, mesmo tendo sido o último a me servir. Dona Emília instigou-me com seu "come m,ais menino!", ao que respondi que "carne de porco não é meu forte" e notei uma revoada de olhares como que de surpresa. Em seguida, o Dinho foi pegar água e eu aproveitei para pedir licença e retirei-me. 

Fui lavar a boca, as mãos, lá  na bica, onde tinha o tanque de lavar roupa, louças, e onde foi feito o "preparo" da sucuri. Ao pegar o pedaço de sabão em barra para esfregar as mãos, do meu lado direito, notei quatro patas caninas jogadas no rego que levar a água de pia para o rio. Aí uma ideia subiu-me à cabeça: Eu comi a minha cachorra! Eu comi a Pintadinha!! Mas ao ver sobre um jirau o couro da minha cadela estirado para secar, o vômito veio sozinho. Foi um dilúvio; um jato após o outro, sem parar, fazendo-me crer que eu ia ter um troço. Enchi as mãos de água e bebi, metendo o dedo na garganta para limpar o estômago e urrei de dor, porque o regurgito foi muito forte, o que fez com que todos ouvissem  e viessem em meu socorro; mas expliquei que apenas estava passando mal, nada mais.  Dirigi-me para o meu cavalo pedindo desculpas, dizendo que precisava ir para casa rápido.

Durante o retorno, notei que realmente eu não estava bem. Parecia que até a estrada estava estranha, e, de repente, vi-me cavalgando pasto afora, longe da trilha beira-rio que fizera na ida.  E dei-me conta de que precisava reencontrar o caminho original e apressar o cavalo para chegar em casa  e tomar um chá verde.

Assim que cheguei, ouvi meu pai gritar " e aí, comeu a cachorra?!" , mas me mantive calado, sem entgender nada, para ouví-lo retrucar " vai me dizer que ocê num sabia que eles come cachorro, que eles queriam a sua Pretinha só porque ela estava bonitinha?" e continuei calado, deixando-o rir de mim até saciar-se, porque ele é demais e quando pega no pé, é pior.

Mamãe fez-me um chá de macaé, mas ainda continuo com nojo deles, e nunca mais vi a Dasdô.
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