sexta-feira, 22 de agosto de 2014

GUISADO DE VIRALATA - Conto * Antonio Cabral Filho - RJ

ANTONIO CABRAL FILHO
em 2011, com os livros
ANTOLOGIA POÉTICA VOL2/UFF, FANTASIAS/ALPAS21, ANTOLOGIA 13 / POSTAL CLUBE
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Seria só um domingo a mais na vida do menino católico levado à igreja pelas mãos da mãe para assistir à missa, confessar, comungar, tomar bênção ao padre, encontrar aqueles amigos " amigos só lá na igreja", primos arrastados pela orelha por desobedecer às mães; enfim, isso.                      

Mas, a única saída era ir à missa de sábado à noite e satisfazer "mamãe", se quisesse curtir uma cachoeira no domingo em companhia do broto desejado; foi o que fiz.

De manhã bem cedo, peguei meu cavalo, arreei, tomei banho, me arrumei, comi um pedaço de queijo e dei um  beijo na "véia", que assistia à missa de  Aparecida pela rádio Inconfidência e parti. Só ouvi o "Deus te guie!" de mãe em pé na varanda, enquanto esporeava o cavalo.

Desci a margem direita do Suassuí uns dez quilômetros e cheguei à fazenda do Mané Cachorro, como era conhecido o senhor Manoel Menezes dos Santos, criador de gado e cavalo de cria.

Mas o animal mais interessante que ele tinha não era das espécies eqüina nem bovina; era homo sapiens mesmo e do gênero feminino, que do alto dos seus apenas quatorze anos, já causava torcicolos nos verdadeiros garanhões  destas plagas de amores arrebatados a bala, quando ela passava chicoteando seu cavalo branco voando com a charrete.

Era loura mediana, e não tirava da cabeça uma fita vermelha em forma de bandana prendendo os cabelo à moda indígena, que lhe caía muito bem sobre aqueles olhos azulados, elevando a luz que realçava seus lábios rubros carnudos; típica italianinha.

Ao chegar, fui logo procurar a cadela Pintadinha, que eu lhe dera de presente uma semana atrás. Mas fui conduzido ao curral, onde ele tratava de uns potros com carrapato, e o meu "animal preferido" logo apareceu com uma bacia de mandioca cozida untada com manteiga, o que gerou um ataque de famélicos, levando-me a queimar a mão por avançar para uma guloseima, mas de olho na outra. Porém, até que foi bom. Fê-la se descontrair, rir um pouco às minhas custas e mostrar-me aquele brilho fogoso que só as mulheres apaixonadas têm quando se deparam com o homem desejado.

Comemos gulosamente, tomamos café, depois fomos pôr os animais na manga, até que chegou aquele momento "vago" que serviu-me de "deixa" e propus irmos todos brincar um pouco na cachoeira, onde o Suassuí quebra à direita. Tirei da cela do meu cavalo o calção de banho, que era de nylon, última moda vinda do Rio de janeiro, me troquei e todos se trocaram e fomos pegar as canoas; rumamos para o rio e formamos duplas; ela topou canoar comigo. Fiquei na dianteira, e fui desviando a canoa das pedras. Mesmo sem poder contemplá-la dado o cuidado que exigia total atenção, pudemos conversar. O trabalho dela na traseira da canoa não era nada fácil, pois devia evitar que batêssemos nas pedras e virássemos.  Chegamos logo ao grande lago e nos pusemos a nadar, trocamos um selinho mergulhando e nos afastamos para não "abusar". Depois chegaram seus dois irmãos seguidos pelos pais e curtimos com a cara deles. Sua mãe não perdeu tempo e, olhando-me de soslaio, disse entredentes: " Aí tem coisa; cêis tão nadando demais..."

Logo depois, tem uma queda d'água de uns dez metros de altura, mais ou menos, de onde gostávamos de pular para mergulhar no piscinão. Propus e dei o exemplo. Caí bem no meio do caldeirão, onde a água retorna depois da pancada no fundo, nadei rápido para a margem, pois ela já estava bem na ponta da pedreira, de onde é bem melhor o pulo. Seus pais vieram juntos, tirando a maior onda , a seguir os meninos voaram em saltos mortais de matar o Cezar Cielo de inveja. Foi a maior festa. Ficamos pilherando deitados na areia enquanto descansávamos.

 Mas o local tem o "Véu de Noiva" mais lindo que eu conheço, pois a água passa por trecho de cachoeira com forte correnteza, ficando totalmente espumosa e, ao chegar na descaída, transforma-se numa cortina de espuma. Por trás dela, tem uma gruta imensa, que eu nunca ousei explorar e que é onde os casais se escondem para namorar. Quando eu disse que ia ver a caverna, fui o último a chegar. 

Ficamos sentados em pequenas pedras conversando bobagens, até Seu Mané avistar uma sucuri do outro lado da piscina e propor levarmos aquele "animar" para comermos assado na brasa. Foi o suficiente para eu pedir-lhe a faca, pô-la nos dentes e avisar que eu ia para a cabeça, todos nos jogamos n'água e ao pegá-la, cortei uns cincoenta centímetro da cabeça para trás, enquanto todos continham-na com o peso dos corpos; fui à cauda e tirei mais de meio metro, e pronto. Era uma vez uma sucuri, uma vez sem o rabo para comandar o estrangulamento, sem a cabeça e o coração para "raciocinar", " quem vale o quê?"

Abrimos o ventre dela, limpamos todinha, subimos com ela nas costas ribanceira acima, pusemos dentro de uma canoa enquanto eu fui buscar o cavalo para puxar tudo  contra correnteza, desta feita ostentando um troféu a mais: bravura! 

Todos olhavam-me com um misto de alegria e admiração, até que o Dinho, irmão mais velho da 
Dasdô, disse " eu quero esse caboclo na família; assim eu não fico sem comer caça!" Mas o "brincadeira tem hora" do pai selou o assunto.

Dona Emília perguntou-me se eu queria um pedaço para minha família, mas recusei. Afinal, eu tinha que "somar pontos". 

Enquanto os velhos picavam o terror da Amazônia em postas, eu e os meninos tomávamos banho e contávamos vantagens, coisas do "Arco da Velha!"  Ninguém ficava para trás. Depois fui dar água a meu
cavalo e fiquei por lá um bom tempo, refletindo nos "acontecidos" até que chamaram para o almoço.

O domingo na casa do Mané Cachorro tinha tudo para ser inesquecível, pois foi a minha primeira oportunidade de ver a escultura grega daquela Vênus italiana. A canoagem, as habilidades com a navegação em correnteza violenta, o pulo do Véu de Noiva, a destreza em descepar a cobra com precisão, o cuidado em não parecer "avançadinho" com a menina, tudo somava a meu favor. Concluí lá com meu botões que eu estava no caminho certo. Mas agora vinha a pior parte, a hora do almoço. Como impressionar a princesinha fazendeira sem conhecer nada de etiquete? Apenas cheguei de mãos devidamente lavadas, observei que as cabeceiras do mesão de cedro eram destinadas aos pais da família, vi que a Dasdô ladeava o irmão Tim e do outro lado havia uma cadeira vazia ao lado do Dinho, seguramente, destinada a mim. Sem pestanejar, 
ocupei o meu lugar. 

Redundante observar que a sala era uma câmara de fragrâncias e que o estômago revirava de apetite, sobretudo, após tanto exercício durante a manhã toda.

Havia um tabuleiro cheio de carne frita, que pareceu-me ser de porco, pelo formato dos pedaços; uma travessa imensa de polenta, característica bem italiana; um panelão de ferro cheio de feijão, uma travessa imensa de arroz, um tigelão de salada de legumes, entre os quais detectei jiló e maxixe, pelos quais eu passaria "batido" etc.Fui objetivo e peguei uma concha de feijão, três colheres de arroz,duas rodelas de batata doce cozidas, um pedaço de carne e dei uma olhada para o jarro de refresco, pelo visto, de laranja, provavelmente feito por Ela. Provei, tinha pouco açúcar, aliás como eu gosto, e, ao provar, senti que "ela" olhava-me "por baixo" e notei a "deixa": Tinha sido feito por ela.

Enquanto comíamos, ninguém conversava. Só se ouvia a orquestra dos talheres.

Não sou de ficar comendo a tarde toda. Gosto de fazer minhas refeições rapidamente. Fui o terceiro a terminar, mesmo tendo sido o último a me servir. Dona Emília instigou-me com seu "come m,ais menino!", ao que respondi que "carne de porco não é meu forte" e notei uma revoada de olhares como que de surpresa. Em seguida, o Dinho foi pegar água e eu aproveitei para pedir licença e retirei-me. 

Fui lavar a boca, as mãos, lá  na bica, onde tinha o tanque de lavar roupa, louças, e onde foi feito o "preparo" da sucuri. Ao pegar o pedaço de sabão em barra para esfregar as mãos, do meu lado direito, notei quatro patas caninas jogadas no rego que levar a água de pia para o rio. Aí uma ideia subiu-me à cabeça: Eu comi a minha cachorra! Eu comi a Pintadinha!! Mas ao ver sobre um jirau o couro da minha cadela estirado para secar, o vômito veio sozinho. Foi um dilúvio; um jato após o outro, sem parar, fazendo-me crer que eu ia ter um troço. Enchi as mãos de água e bebi, metendo o dedo na garganta para limpar o estômago e urrei de dor, porque o regurgito foi muito forte, o que fez com que todos ouvissem  e viessem em meu socorro; mas expliquei que apenas estava passando mal, nada mais.  Dirigi-me para o meu cavalo pedindo desculpas, dizendo que precisava ir para casa rápido.

Durante o retorno, notei que realmente eu não estava bem. Parecia que até a estrada estava estranha, e, de repente, vi-me cavalgando pasto afora, longe da trilha beira-rio que fizera na ida.  E dei-me conta de que precisava reencontrar o caminho original e apressar o cavalo para chegar em casa  e tomar um chá verde.

Assim que cheguei, ouvi meu pai gritar " e aí, comeu a cachorra?!" , mas me mantive calado, sem entgender nada, para ouví-lo retrucar " vai me dizer que ocê num sabia que eles come cachorro, que eles queriam a sua Pretinha só porque ela estava bonitinha?" e continuei calado, deixando-o rir de mim até saciar-se, porque ele é demais e quando pega no pé, é pior.

Mamãe fez-me um chá de macaé, mas ainda continuo com nojo deles, e nunca mais vi a Dasdô.
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